Por :Eliane Brum
Jornalista, escritora e documentarista.
Dias
atrás liguei para meus pais e os dois se divertiam com as dificuldades de
expressar o amor que sentem um pelo outro. Acontece o seguinte. Toda manhã meus
pais acordam, mais ou menos no mesmo horário, e ficam abraçadinhos esperando o
sol entrar pelas frestas da persiana enquanto conversam sobre a vida. O desafio,
agora, segundo minha mãe, que é mais despachada, é encontrar uma posição em que
não doa alguma parte do corpo de um e de outro. Ora é a coluna do meu pai que se
anuncia, interrompendo o beijo, ora são os joelhos da minha mãe que gritam
embaixo do cobertor. Então, ele aos quase 81, ela perto dos 76, gastam alguns
minutos encontrando uma posição em que é possível namorar sem dor. Acabam
achando. Quando não param para rir da própria condição humana, o que também
provoca algumas dores.
Para
mim, a imagem do dia dos namorados, essa data tão comercial que acabou de levar
legiões aos shoppings, é a de meus pais achando uma posição para se abraçar
entre as dores de um corpo que viveu. Acho que o amor começa com som e com
fúria, mas aprende na passagem do tempo o valor das pequenas delicadezas, as
manias de cada um que irritam, mas que fazem cada um ser o que é. Aquela mirada
terna e quase secreta em direção ao outro que faz uma bobagem qualquer, para mim
vale tanto ou mais que o furor do desejo. Aprendi isso observando meus pais,
primeiro com ciúmes desse amor onde eu não cabia, porque sabiamente eles
mantiveram essa parte só para eles. Depois, com curiosidade científica e,
finalmente, com ternura.
Desde
que me entendo por gente, meus pais namoram. O que para mim foi por muito tempo
algo misterioso, que exigia uma investigação que, por medo da descoberta, eu
acabava sempre postergando. Por exemplo: por que as luzes da cabeceira trocavam
de cor a cada semana? Em algumas noites eram vermelhas, em outras azuis e havia
até madrugadas de verde. Eu perguntava, claro que perguntava, e a resposta era
verdadeira, mas convenientemente sucinta: “Para variar”.
Meu
pai deve ter sido o único pai do mundo que passou pela Disney, numa inusitada
viagem de trabalho, comandando uma trupe de agricultores, e voltou de lá não só
com brinquedos para nós, mas com baby-dolls para a minha mãe. Baby-dolls que
corariam não apenas o Mickey, mas também os piratas do Caribe.
É
também o único homem que eu conheço que dá rosas para a minha mãe no
“aniversário de conhecimento”. Até hoje. Sim, “aniversário de conhecimento” é
uma data lá em casa. Enquanto o poste embaixo do qual trocaram sussurros
supostamente castos existiu, eles faziam visitas periódicas ao poste, como uma
espécie de dívida de gratidão. Depois, foram miseravelmente traídos pela
prefeitura. E o banco da praça onde trocaram confidências, e possivelmente
algumas inconfidências, foi parar no museu. Não por causa deles, parece óbvio
para todos. Menos para nós.
Tudo
começou com o que eu chamo de “tijolaço” que minha mãe acertou na cabeça do meu
pai. Minha mãe se finge de ofendida, mas sei que ela gosta da minha versão. Era
terrível a minha mãe. Aos 13 anos ela viu meu pai passar com seu porte de
soldado de chumbo e decretou: “Este vai ser meu”. Meu pai nem desconfiava,
preocupado que estava com suas obrigações no internato, ele que trabalhava duro
para pagar os próprios estudos, primeiro na limpeza, depois no cuidado dos
alunos. Não adivinhava, mas já tinha o futuro decidido por uma pirralha com uma
trança ruiva de cada lado.
Aos
15 dela, 20 dele, ela o avistou na festa de Sete de Setembro da paróquia da
igreja matriz e despachou um correio amoroso em sua direção. Correio amoroso era
a versão do torpedo no século passado. Era 1950, veja bem, no interior do Rio
Grande do Sul, e ela tivera o desplante de escrever essa intimação. Sutil como
uma ararinha azul num filme de zumbis a minha mãe: “Se for correspondida, serei
a mulher mais feliz do mundo”. Meu pai espichou um meio sorriso em sua direção,
o que deve ter lhe custado mais do que o passo que Neil Armstrong daria no final
da década seguinte. Meu pai só foi aprender a sorrir muito mais tarde. Ensinado,
claro, pela minha mãe.
Minha
mãe se tornou mesmo a mulher mais feliz do mundo. E vice-versa. E nós aprendemos
a vê-los sempre de mãos dadas andando pela cidade, no seu passo só aparentemente
dissonante, minha mãe mais ligeirinha, atuando no miúdo, e meu pai com passadas
lentas e firmes. Meu pai passeando pelos interiores de si, minha mãe
novidadeira, auscultando os arredores. E, aos finais de semana, os dois
executando o balé de décadas ao caminharem de mãos entrelaçadas para espiar as
vitrines das lojas, fazendo de conta que elas mudavam, se abismando ora com a
boniteza das peças, ora com o preço “pela hora da morte”.
Quando
eu era criança, como já contei aqui, eles cumpriam também o programa familiar do
domingo, no qual éramos generosamente incluídos, e que consistia em uma volta de
fusca para ver as casas bonitas da cidade pequena. Sempre as mesmas, sempre dos
mesmos. Lá em Ijuí eram os médicos, os fazendeiros e os empresários que tinham
se dado bem no “milagre” econômico da ditadura militar que tinham casas bonitas.
O resto se virava.
A
vida deu e tirou de tudo do meu pai e da minha mãe, como em geral faz com quase
todos. Roubou-lhes uma filha, deu-lhes outra da pá virada, a maior parte do
tempo faltou-lhes dinheiro e sobrou trabalho, suspiraram de júbilo e de tristeza
talvez na mesma proporção. Por muitos anos sonharam em fugir do verão de Ijuí,
de onde até o diabo escapa lá por dezembro, mas não encontravam jeito. Quando
juntaram umas economias, a casa que alugaram ficava na zona rural da cidade
praiana, e em vez de gaivotas tínhamos galinhas. Mas nos divertimos mesmo assim,
e virou história.
Como
virou história a nossa primeira ida em família a um restaurante. Chinfrim que
só, mas pisávamos em nuvens com nossas roupas de aniversário e sentíamos aromas
de mil e uma noites. Para mim, nunca haverá um D.O.M. ou Fasano que se equipare
ao restaurante do Primo. Desde então, e até hoje, qualquer prato seguido por “à
Califórnia” é sinônimo de coisa muito fina lá em casa. A gente enchia a boca
para dizer “à Califórnia” E até hoje meus pais adoram coisas “à Califórnia”.
Para
mim e para meus irmãos era um choque descobrir que na casa de alguns de nossos
amigos os pais não se beijavam nem arrulhavam. Nós achávamos que era uma lei da
natureza que determinava, geneticamente, o modus operandi dos pais. Fiquei
indignada quando disseram, uns anos atrás, que Hebe Camargo tinha inventado o
selinho. Todo mundo sabe que foram os meus pais.
O
amor é assim. Cheio de coisas sem importância que fazem uma vida. Acho que a
sabedoria dos meus pais foi ter percebido que eram essas pequenas delicadezas o
que realmente importava. Que os desacertos e as trapalhadas teciam os enredos
das histórias que iam bordando a nossa pequena saga. Ninguém nunca achou lá em
casa que era fácil viver, por isso o difícil assustava, mas não nos metia tanto
medo assim.
Gosto
de pensar, quando acordo pela manhã, que meus pais estão procurando, apesar das
dores de outono, uma posição para ficar abraçadinhos. E, assim, encaixados de
amor, falar da vida enquanto lá fora, como Erico Verissimo tão bem percebeu,
ruge o tempo e o vento, cada vez mais vorazes.
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